2020 | Meu Ano Cinéfilo (4/4)

Em Meu Ano Cinéfilo, compartilho as sessões de cinema que marcaram 2020, com um pequeno comentário dedicado a cada filme. 

Nesta quarta parte, 30 filmes vistos pela primeira vez no último trimestre do ano. 

Parte I – Primeiro Trimestre
Parte II – Segundo Trimestre
Parte III – Terceiro Trimestre

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O Ano do Descobrimento (Luis López Carrasco, 2020)

Carrasco documenta as dificuldades de vida e trabalho na classe trabalhadora espanhola, a qual expõe suas perspectivas sobre aspectos políticos e morais do país durante bebedeiras na mesa de um bar. As coisas ficam mais complexas à medida em que o dispositivo se torna evidente: gravadas em VHS e emulando imagens de arquivo dos anos 1990, as conversas e histórias narradas descortinam um país (ou um mundo) que avançou muito pouco em 30 anos.

Bloody Nose, Empty Pockets (Turner Ross, Bill Ross IV, 2020)

Espécie de filme-irmão de O Ano do Descobrimento, embora mergulhe mais fundo na análise geracional. Mockumentary acompanhando o que supostamente seria a última noite de um bar encerrando as atividades – com o adendo de que, na verdade, o bar já fechou, e seus frequentadores estão reencenando aquela noite em frente às câmeras. Inicialmente o filme despertou mixed feelings, mas volto a pensar nele com frequência – e isso é ótimo.

Dias (Tsai Ming Liang, 2020)

Tsai à altura do autor de Cães Errantes, ou seja, mais interessante que o artista de vídeo-instalações de museu que se tornou nos últimos anos. Bela meditação sobre o tempo e, especificamente, sobre o tempo no plano cinematográfico, ou o tempo na carne e pele humana. A exemplo dos seus outros filmes recentes, a imagem é soberana e a palavra não encontra espaço na obra – mas, dessa vez, há ideias mais consistentes sustentando a experiência.

Fourteen (Dan Sallitt, 2019)

Uma década na vida de duas amigas, acompanhando os primeiros passos na vida adulta e as diferenças que levam as partes de uma relação a caminhos opostos. Torna-se cada vez mais dramático à medida que o tempo avança, até chegar a um final desnorteante. E é incrível que, num filme supostamente todo sustentado pela palavra, o plano inesquecível seja justamente aqueles longos segundos de meditação silenciosa da câmera registrando a estação de trem.

Garota Negra (Ousmane Sembène, 1966)

Diouana deixa sua casa no país natal, Senegal, para trabalhar como babá dos filhos de um casal burguês na França. Chegando lá, precisa cozinhar, limpar a casa e cuidar de todos os caprichos dos patrões. Colonialismo e racismo estrutural em seu aspecto mais didático e constrangedor, com constrastes sociais e relações de poder explicitamente representadas. Uma narrativa central para o cinema africano e um convite para adentar à obra do precursor Ousmane Sembène.

Luz nos Trópicos (Paula Gaitán, 2020) / É Rocha e Rio, Negro Leo (Paula Gaitán, 2020)

Seja por meio do bate-papo com seu genro ou das pontes construídas entre a América do Norte e a do Sul em seu épico de ficção, Gaitán se revela a grande cronista das Américas no ano 2020. Luz nos Trópicos, em especial, traz alguns dos planos mais complexos e fascinantes do cinema brasileiro contemporâneo, ainda mais fortes à medida em que são exibidos pela primeira vez num festival virtual enquanto a floresta na qual foram rodados arde em chamas.

Maridos (John Cassavetes, 1970)

É o terceiro filme com longas cenas de bebedeira em bar mencionado na lista, algo que soa como uma assombração considerando o ano pandêmico. Cassavetes refinando seus planos de improvisação que colocam a produção de cinema lado a lado com as jam sessions de jazz, com cada player explorando diferentes escalas de notas em torno de uma mesma melodia. Nesse sentido, Cassavetes, Falk e Gazzara formam indiscutivelmente o melhor trio de jazz do mundo.

As Mãos Sobre a Cidade (Francesco Rosi, 1963)

Primeiro contato com a obra de Rosi, um filme que expõe fraturas do sistema político italiano e retrata o distanciamento entre os objetivos do povo e dos representantes do povo. A queda de um prédio na periferia de Nápoles, dias antes da eleição municipal, origina uma série de lutas pela sobrevivência – sejam a sobrevivência humana, para a população do local, ou a política, para os líderes envolvidos no caso que precisam livrar a própria pele para disputar novamente o poder.

O Matador (Henry King, 1950)

Outro cineasta que eu ignorava até então, sem razão específica – mas as recentes revisões críticas sobre sua obra convidaram a mergulhar na filmografia. Comecei por O Matador, anti-faroeste ancorado em revisões psicológicas de heróis e vilões, algo que seria visto com maior frequência no cinema em anos seguintes. Pack é uma espécie de pistoleiro cansado, que não quer mais cometer crimes, mas ao qual o crime sempre chama – seja como autor ou vítima.

A Mulher Que Inventou o Amor (Jean Garret, 1980)

Devorando o sistema pelas entranhas. Uma pornochanchada em que o objeto de desejo sexual ganha a oportunidade de vingar sua condição em frente aos olhos do público, virando tudo pelo avesso. Comentários sociais muito bem articulados com a ficção, mesmo quando são pouco sutis – o que no fim joga a favor do filme. Um mundo inteiro de fingimentos e encenações, do casamento ao orgasmo, da moda à televisão, num delírio formal de pura invenção.

Oroslan (Matjaž Ivanišin, 2019)

Uma das sessões do Olhar de Cinema que guardei com mais carinho na memória. Muito bonito o olhar de Ivanišin para o cotidiano da pequena comunidade rural, seus contos e causos, acompanhando o impacto da morte de um morador recém falecido nos homens e mulheres que restaram vivos naquele local pacato. Híbrido de documentário e ficção, lembra o cinema de Apichatpong Weerasethakul em seu retrato da comunidade, na exploração do cotidiano e da narrativa oral.

O Peixe Assassino (Antonio Margheriti, 1979)

Filme de gênero italiano produzido no Brasil, com locações em Angra dos Reis/RJ. Daqueles exemplares típicos do cinema italiano do final dos anos 1970, quando as melhores ideias já haviam se esgotado e o que restava era testar as combinações mais delirantes de histórias, gêneros e tons. É um thriller de assalto tropical com piranhas assassinas. As coisas não necessariamente se encaixam na maior parte do tempo, e talvez por isso mesmo seja tão divertido.

Prefeitura (Frederick Wiseman, 2020)

O olhar cuidadoso de Wiseman para as atividades da prefeitura de sua cidade natal, Boston, pode parecer condescendente com o sistema político. Entretanto, ao final das mais de 4 horas, a impressão é a de jamais termos visto uma demonstração tão abrangente da importância e dos desafios do serviço público na vida comunitária – algo que a turma neoliberal jamais fará questão de entender. A hora final, menos focada no prefeito e mais nos agentes públicos, é extraordinária.

O Profeta da Fome (Mauricio Capovila, 1970)

José Mojica Marins é uma atração de circo que, após uma confusão durante o número no qual deveria devorar uma criança, acaba fugindo pelo sertão e se tornando uma espécie de Messias para a população faminta do interior do nordeste. Filme sobre o subdesenvolvimento, mas também sobre a arte de fazer muito com pouco, condição na qual o artista brasileiro vive desde as origens.

O Quinto Poder (Alberto Pieralisi, 1962)

Thriller especulando uma invasão estrangeira e o controle das massas por meio da emissão de sinais de televisão. O tipo de ficção paranóica com toques de sci-fi que se tornaria popular nos Estados Unidos ao longo da década de 1980 (Videodrome e Eles Vivem vêm à memória imediatamente), porém realizada no Brasil duas décadas antes. Algumas cenas são impressionantes, principalmente a perseguição no topo do bondinho do Pão de Açúcar.

Responsabilidade Empresarial (Jonathan Perel, 2020)

Perel lê trechos do relatório elaborado pelo governo argentino sobre crimes cometidos por indústrias durante a ditadura, quando entregaram aos militares seus colaboradores ‘subversivos’ – muitos deles desaparecidos ou mortos. Ilustrando a narração, o diretor capta planos da fachada de cada empresa ao melhor estilo tocaia, com a câmera registrando as atividades no entorno de cada empresa de dentro de um carro. Conceitualmente, um dos filmes mais fortes do ano.

Rosa la Rose, Garota Pública (Paul Vecchiali, 1986)

Visto na mesma tarde de A Mulher Que Inventou o Amor, fica parecendo um sonho da Aldine Muller. Se a visão de Garret sobre o amor é a de um desiludido, a do Vecchiali é a de um sonhador, o que transforma o filme numa espécie de conto de fadas bem perigoso. Afinal, debaixo da profusão de cores, músicas e de todo o encantamento que exala pela Marianne Balsei, há o mesmo e inevitável sofrimento amargo.

O Sal das Lágrimas (Philippe Garrel, 2020)

Dividiu opiniões como poucos filmes do ano e ainda não entendi direito a razão. De fato é um protagonista odioso, porém filmado com distanciamento por Garrel, cuja perspectiva sobre ele se aproxima à do pai do rapaz, um senhor de idade que é praticamente enxotado para fora do filme pela estupidez do filho. Um filho que, aos poucos, perde tudo que possui por seu comportamento arredio, até terminar a história sozinho, batendo uma porta na cara do espectador. Danação bem ao gosto do Garrel.

O Segredo da Múmia (Ivan Cardoso, 1982)

Por falar em divisão de opiniões, os filmes do Ivan Cardoso costumam passar pelo mesmo perrengue. Confesso ter me divertido muito com esse, humor escroto aliado a um senso de fantasia mais refinado que o esperado, brincando sagazmente com as estruturas, elementos e clichês de diferentes gêneros e subgêneros do horror e da ficção-científica – monstros assassinos, médicos loucos e os populares terrirs americanos dos anos 1980, especialmente.

Serge Daney: Itinerário de um ‘cine-filho’ (Pierre-André Boutang, Dominique Rabourdin, 1992)

Documentário para TV com mais de três horas de entrevistas com Daney, falando sobre cinefilia, cinema, televisão, imagem. Realizado alguns anos antes da sua morte, no início da década de 1990. Para quem procura conhecer melhor um dos grandes críticos de cinema da França, taí uma excelente oportunidade – muito bom para renovar a fé na cinefilia, no ato de ver e pensar cinema. DOC disponível com legendas em português no Making Off.


Sibéria (Abel Ferrara, 2020) / Sportin’ Life (Abel Ferrara, 2020)

Ferrara ocupou a Mostra de SP virtual com dois filmes complementares: Sibéria, obra das mais radicais de sua carreira, com um Willem Dafoe atormentado revivendo traumas e horrores isolado na neve; e Sportin’ Life, documentário que inicia sobre a promoção de Sibéria em Berlim e termina, enfim, como um registro do caos instaurado no mundo em 2020 – e como o cinema, de algum modo, pode responder imediatamente a ele.

O Tango do Viúvo e Seu Espelho Deformador (Raul Ruíz, Valéria Sarmiento, 2020)

Mais uma obra perdida de Ruíz, resgatada e montada postumamente pela Valéria. Aqui o desafio foi ainda maior do que em A Telenovela Errante: sem a faixa de áudio e com buracos na história, ela transforma os obstáculos da montagem em dispositivo e origina assim o conceito de ‘espelho deformador’ revelado pelo título. O resultado é mais curioso que brilhante e aproxima o projeto de algumas técnicas de edição e da atmosfera nostálgica de Twin Peaks: The Return.

Tempestade Sobre Washington (Otto Preminger, 1962)

Foi o filme escolhido para ser visto na noite em que confirmaram a projeção de vitória de Joe Biden na eleição norte-americana. Inicialmente uma noite feliz, em que se acendia uma centelha de esperança sobre o fim do obscurantismo que dominou a política das Américas. A centelha apagou junto aos créditos finais desse olhar amargo sobre o sistema político americano, que no fim é mesmo incorrigível.

There Will Be No More Night (Eléonore Weber, 2020)

A palavra shot, em inglês, representa o ato de rodar um plano e também o ato de atirar com uma arma – no princípio do cinema, o operador de câmera girava uma manivela parecida com a das metralhadoras da época, dando origem ao termo. Com as novas guerras virtuais, encabeçadas por operadores de drones e satélites, chegou o momento em que a câmera cumpre efetivamente a função de uma arma. Documentário produzido com imagens reais do exército americano.

The Woman Who Ran (Hong Sang-soo, 2020)

A estrutura em blocos quase simétricos revela indícios da rigidez formal habitual de Sang-soo. Dessa vez, porém, o conceito geral é menos dependente dessa estrutura que outros trabalhos recentes do diretor, fluindo mais da espontaneidade das conversas em cena. A cada novo encontro, seja com amigas ou com a tela de cinema, abrem-se novas perspectivas para o entendimento da protagonista sobre a vida e suas necessárias mudanças. Sang-soo continua em grande forma.

Uma Hora Contigo (Ernst Lubitsch, 1932)

Lubitsch testando os limites da moral no cinema com um discurso totalmente libertino sobre casamento e adultério. A essa altura o humor mordaz do diretor já incomodava muita gente em Hollywood, não por acaso foi lançado apenas 2 anos antes do Código enrijecer ainda mais a regulação dos filmes. Não chega ao nível de suas obras-primas e algumas ideias são discutíveis até hoje. Ainda assim, é sempre ótimo ver um mestre em pleno domínio do seu método.


Undine (Christian Petzold, 2020)

Petzold e Shyamalan nunca pareceram tão próximos. Undine provoca várias aproximações com o indiano, em especial com A Dama na Água e outras ficções que trazem a fantasia à cena em confronto direto com a realidade cartesiana da metrópole moderna. Aqui o foco é Berlin e os mitos que ela oculta debaixo de velhos edifícios, escombros e lagos. Não chega às vias de fato de uma fantasia explícita, mas o gosto pela fantasia é onipresente na obra.

Parte I – Primeiro Trimestre
Parte II – Segundo Trimestre
Parte III – Terceiro Trimestre

Um comentário em “2020 | Meu Ano Cinéfilo (4/4)

  1. Olá,

    Lembro que você fez um top 50 de filmes preferidos, há muitos anos atrás, ainda no “Assim está escrito”. É aquele tipo de postagem que se perde com o tempo… gostava dela, usava como referência no início da cinéfilia e queria revê-la, mas acho que você nem deve ter mais ou até nem deve lembrar disso, hehe, e certamente a lista estaria bem diferente hoje em dia.

    Bom, fica aí a sugestão de atualizar ela, talvez prum top 100…

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