Asteroid City (Wes Anderson, 2023)

Asteroid City levou-me a pensar no Mariano Llinás, naquele antológico quarto episódio de La Flor, desenhando para o espectador numa folha de papel a estrutura narrativa do filme que estávamos vendo. Também no Raúl Ruiz do labirinto de histórias de Combate do Amor em Sonho, expondo seu método na cena de abertura com o João Bénard da Costa, e combinando elementos pré-definidos em novas tramas e situações inesgotáveis. É nessa aproximação com cineastas que projetam seus filmes a partir de fabulações sobre a sua própria ficção que embarco, com interesse renovado, na atual fase da carreira de Wes Anderson.

A proposta aqui não é colocar Anderson em um pedestal que não lhe pertence, mas começar uma conversa sobre o que me seduz nessa cruzada quase solitária dele por uma Hollywood cada vez mais anódina, onde a regra parece ser o desprezo à personalidade. E afirmar que, desde O Grande Hotel Budapeste, mas principalmente nestes dois últimos filmes, A Crônica Francesa e Asteroid City, o diretor encontrou, por meio de um modelo metanarrativo, o tom ideal para dar forma à sua imaginação e à estética singular que aprimorou durante os anos.

Alguém, no grande e vasto mundo da internet, escreveu que Asteroid City poderia ser uma obra dirigida pelo Max Fischer, o deslocado jovem artista interpretado por Jason Schwartzman e com o qual Anderson representava a si mesmo em Rushmore. Quase três décadas depois e o cinema de Anderson, obcecado por dioramas e combinando diferentes formas de arte (cinema, teatro, literatura, pintura, animação, música, arquitetura), passa a construir novos mundos nos quais a grande atração não é exatamente a história representada, mas sim a própria construção desse mundo e das personagens em cena.

Filmes sobre o jovem Max Fischer criando a sua arte? Afinal, ambos têm em comum essa estrutura orbitando a figura de um autor/narrador, a partir do qual as histórias se desenvolvem, em fluxos de storytelling ao mesmo tempo melancólicos e cheios de energia juvenil. Em Asteroid City, Anderson ainda trata de ampliar essa estrutura, acrescentando diferentes níveis de realidade em torno da figura central do narrador, elaborando o filme a partir de um programa de televisão que registra os bastidores e a encenação de uma peça de teatro onde são acomodados os dramas e os supostos protagonistas da história. Supostos, pois, embora existam ali uma gama de personagens já bastante característicos do universo cinematográfico de Anderson, cada um com seus próprios conflitos dramáticos, opto pela leitura de que os verdadeiros protagonistas do filme não são aqueles que habitam a história-dentro-da-história, mas aqueles que a interpretam no palco encenado.

Em conjunto com esses atores, Anderson esmera-se na representação de um tempo e espaço que não viveu, mas que incidiu diretamente nos rumos da cultura dentro da qual cresceu durante a segunda metade do século XX: os paranóicos e esquisitos Estados Unidos dos anos 1950. E abusa de todos os artifícios disponíveis para materializar esse imaginário em tela, dialogando com o que essa cultura produziu de fascinante e perigoso durante e sobre o período: dos cartoons de Looney Tunes aos quadros de Edward Hopper, dos livros de Thomas Pynchon à popularização da televisão, da corrida espacial ao sci-fi, da paranóia anti-comunista ao boom da publicidade construída por meio do design e da fotografia, que materializava e difundia o maldito american way of life.

Se todos esses signos e referências estão reunidos em um mesmo filme, é justamente para reafirmar a crença do artista no poder da arte da representação para lidar com as dores e as memórias, sejam elas de um tempo, uma cultura ou um indivíduo. E se eu tivesse que escolher uma imagem para concluir essa ideia, ficaria com a atriz interpretada por Scarlett Johansson morta na banheira, emoldurada por uma janela, até que a ilusão da representação se desfaça no plano seguinte. You can’t wake up if you don’t fall asleep.

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