Zombie 2 – A Volta dos Mortos (Lucio Fulci, 1979)

Sobre a decomposição

Os minutos iniciais de Zombie 2 – A Volta dos Mortos (Zombi 2 /Zombie, 1979), primeira incursão de Lucio Fulci no universo dos mortos-vivos, apresentam-se como uma carta de intenções de toda a radicalidade introduzida pelo mestre italiano com este filme, tanto no gênero em questão quanto em sua própria trajetória no cinema. Logo na primeiríssima imagem, somos surpreendidos com um plano em close através do qual, lentamente, o cano de uma pistola é apontado contra o olhar do próprio espectador, em um gesto de violência austera e terrivelmente insolente. No plano seguinte, o contracampo anuncia: na direção para a qual a arma foi apontada está deitado um homem enfermo, com o corpo amarrado e coberto por um tecido desgastado, que começa a se levantar em um movimento carregado de estranhamento. Após disparar um tiro fatal no meio da cabeça encapuzada, o atirador, com a pistola ainda quente em punhos, anuncia: “Agora o barco pode partir”. Sobem os créditos. O filme vai começar.

O barco em questão se desloca de uma remota ilha caribenha para aportar em Nova York. Nas imagens seguintes, a Big Apple é anunciada em torno dele por meio de alguns dos seus signos mais emblemáticos – as torres gêmeas, a Estátua da Liberdade. O espectador é convidado a explorar o espaço em composições solares e misteriosas, intercalando panorâmicas da cidade com planos médios e de detalhe do interior deste barco, aparentemente sem tripulação. Na faixa de áudio, por longos segundos não ouvimos nada além de ruídos: o leme de madeira que range ao ser movido pela força das ondas, latas vazias rolando de um lado para o outro do casco, a vela balançando contra o vento. A polícia se aproxima do barco e o mistério persiste: no interior da embarcação há comida podre sobre a mesa, larvas deslizando sobre as teclas de um piano, uma grotesca mão amputada, e, finalmente, um homem obeso em estado avançado de decomposição, que salta sobre a garganta do policial, mordendo-a brutalmente e inundando a cena de sangue.

Ao longo de 8 minutos, a primeira aparição de um morto-vivo na obra de Lucio Fulci é encenada por meio de uma meticulosa composição de imagens e sons, totalmente alavancada pela representação de sensações e pela modulação do espaço e do tempo, sem um protagonista ou uma trama concreta em seu centro. É um desses momentos que elevam a obra de qualquer cineasta a outro patamar – saímos todos transformados, autor e espectadores -, abrindo um filme que viria a consolidar Lucio Fulci como um dos grandes mestres do cinema de horror italiano, gênero que o diretor passaria a explorar obsessivamente no restante da sua filmografia. São 8 minutos de uma aula de composição e atmosfera, e que sintetizam as virtudes dos outros 90 minutos a seguir: uma impressionante representação da morte e da decomposição do corpo humano, por meio de uma radical e igualmente impressionante desconstrução da narrativa tradicional. 

Em Zombie 2, 11 anos após Romero dar vida aos zumbis modernos com seu revolucionário A Noite dos Mortos Vivos (Night of The Living Dead, 1968), Fulci oferece uma nova perspectiva para a representação dos mortos-vivos. Os zumbis de Fulci, afinal, reservam poucas semelhanças com os de Noite ou mesmo da segunda obra de Romero no gênero, o fabuloso Despertar dos Mortos (Dawn of the Dead, 1978). Isso porque, contrariando a conexão sugerida pelo próprio título da obra (Zombie 2 recebe este título na intenção de seu produtor, Fabricio De Angelis, de intuir uma continuação direta ao Despertar dos Mortos, pegando carona no sucesso comercial do filme de Romero, que havia sido lançado na Itália como Zombie), Fulci e sua equipe ignoram as tendências mais óbvias dos zumbis modernos para proporem uma experiência outra, resgatando, para isso, a essência do mito zumbi presente em culturas ancestrais, e conectando-se a filmes do primeiro ciclo de zumbis do cinema, como Zumbi Branca (White Zombie, 1932) e A Morta Viva (I Walked With a Zombie, 1943). 

Opondo-se à racionalidade da mitologia zumbi orquestrada por Romero e seus seguidores, pela qual os mortos-vivos são conhecidos como corpos contaminados por radiação, vírus de laboratório ou outros sintomas que reflitam problemas emergentes da modernidade, os zumbis de Fulci são ameaças de ordem puramente sobrenatural, pedaços pútridos de carne humana que retornam à superfície da terra supostamente reanimados por vodu ou pela abertura de portais do inferno, sem qualquer motivação racional. Enquanto em outras obras do gênero os zumbis costumam ser analisados por sua qualidade metafórica, em Fulci a existência destes seres não depende de um subtexto nem oferece qualquer leitura alegórica – seja neste Zombie ou nos filmes seguintes protagonizados por zumbis, como A Cidade dos Mortos-Vivos (Paura nella città dei morti viventi, 1980), A Casa do Cemitério (Quella villa accanto al cimitero, 1981) ou Terror nas Trevas (…E tu vivrai nel terrore! L’aldilà, 1981). A matéria com a qual o diretor lida é justamente a finitude da vida e a decomposição da carne, e sendo assim, o retorno dos mortos à superfície é simplesmente um ponto de partida para o horror absoluto, trazendo junto consigo toda a herança do longo tempo que repousaram debaixo da terra. 

É o que se percebe na aparição de cada zumbi na obra, na qual os corpos dos mortos-vivos deixam rastros de carne podre em todo lugar que tocam ou são tocados. A elaborada maquiagem materializa perfeitamente a visão do diretor para a representação decadente dos mortos-vivos. Os zumbis caminham lentamente sobre a terra e exibem em sua pele as marcas de uma decomposição em estágio avançado. Não são corpos recém enterrados ou contaminados por uma mordida, não evidenciam qualquer indício de transmissão latente – jamais veremos um personagem humano transformado em zumbi, é como se esses mortos já estivessem condenados há séculos. Em uma das cenas mais antológicas do filme, o corpo de um explorador espanhol do período da colonização das Américas levanta de sua tumba na ilha para assassinar uma das personagens, e os orifícios do seu rosto, já sem os órgãos originais, estão preenchidos por centenas de larvas.

O cenário da ilha caribenha, onde a maior parte da trama é ambientada, é por sinal um local perfeito para a subversão proposta por Fulci, um paraíso na terra transformado em Inferno com a ascensão dos mortos para a superfície. A atmosfera de horror é construída sem que o filme precise reproduzir alguns códigos facilmente reconhecíveis do gênero – iluminação artificial estilizada, preferência por ambientações noturnas, efeitos sonoros estridentes, etc. Grande parte da ação transcorre durante o dia, embalada pelo som de tambores de vodu ou pela trilha sonora incidental. A fotografia é inundada pela luz do sol do Pacífico. Entretanto, as ruas de terra batida da pequena ilha são ornamentadas com cadáveres, caranguejos e outros bichos, árvores caídas e pedaços de madeira em decomposição. Um cenário paradisíaco e realista que é invadido pelos males do Inferno, com os mortos-vivos deixando um rastro de danação e morte em um ambiente onde homem e natureza costumavam conviver em harmonia. 

Se a representação dos zumbis e a ambientação da ilha se conectam a tradições ancestrais, a forma do filme, por sua vez, aponta para o futuro. Em Zombie 2, acompanhamos o primeiro grande salto de Fulci rumo à sua desconstrução da narrativa tradicional, que chegaria ao esplendor na magnus opus futura Terror nas Trevas. Os personagens se acumulam no filme sem que necessariamente se tornem protagonistas de uma história ou carreguem consigo algum conflito relevante; apenas fornecem novos pontos de vista para permitir que a narrativa percorra diferentes caminhos, construindo set pieces independentes de horror e morte e movendo-se com liberdade pelas situações, sem que elas representem qualquer tipo de avanço dramático. É um filme elaborado sobre sensações e com diversas sequências montadas em blocos auto-suficientes, trazendo uma história que poderia ser descrita em duas ou três linhas, mas que na verdade importa pouco para a experiência estética proposta. 

Essa liberdade é materializada pelas duas cenas mais famosas do filme, e nas quais nenhum dos personagens supostamente centrais estão envolvidos. A primeira delas é o tipo de absurdo que só se encontra no cinema fantástico italiano: uma luta subaquática entre um zumbi e um tubarão. Rodada por parte da equipe a contragosto de Fulci, a cena acabou permanecendo na montagem final e se tornando um dos momentos de antologia do cinema de horror, com zumbi e animal protagonizando um balé debaixo d’água. O segundo momento viria a se tornar uma das cenas-chave da carreira do diretor, reproduzida em diversos de seus filmes seguintes: a mulher que é morta com um lasca de madeira perfurando seu olho. Cena filmada e montada de modo a tornar a ação quase insuportável para o espectador, alternando o ponto de vista do olho da vítima com o da própria arma, até que esta penetre inteiramente no globo ocular. Dois grandes momentos que reforçam a lição deixada pelos mestres do horror italiano: o cinema é uma experiência estética sublime e perigosa como nenhuma outra, quando concebida e encarada como tal.

Texto publicado originalmente no livro Monstros no Cinema – Dez Filmes Essenciais, lançado pela distribuidora Versátil.

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