Elegia à arte fantástica
O ciclo do cinema de horror italiano, representado neste livro por três obras-primas incontornáveis (Terror nas Trevas, de Lucio Fulci; O Ciclo do Pavor e Lisa e o Diabo, ambos de Mario Bava), é até hoje um dos mais fascinantes da história mundial do gênero. Um surto coletivo que seduziu autores, produtores e espectadores ao longo de quase 40 anos, desde meados dos anos 1950, com o lançamento do maravilhoso Os Vampiros (1957), dirigido por Riccardo Freda e fotografado por Mario Bava, até seu canto de cisne nos anos 1990, com Dellamorte Dellamore (1994), dirigido por Michele Soavi, originando ao longo deste período uma exuberante filmografia que explorava diversas características e vertentes do horror. Do gótico medieval ao realismo urbano, do atmosférico ao grafismo extremo, os mestres italianos entenderam como poucos os códigos do gênero e construíram por meio deles experiências estéticas avassaladoras, conectando-se a um público sedento por novas histórias que representassem os medos e anseios da humanidade com tintas fantásticas.
Esse cenário efervescente permitia a autores dotados de grande imaginação, como os já mencionados Lucio Fulci e Mario Bava, o exercício de toda sua criatividade com uma liberdade raramente obtida em outras cinematografias. O caso de Fulci, neste sentido, é um dos mais especiais. Um diretor que, a exemplo de outros cineastas italianos, como Umberto Lenzi e os próprios Freda e Bava, transitava por múltiplos gêneros explorados comercialmente pela indústria do país – comédia, guerra, faroeste, peplum -, mas, pelo menos no caso de Fulci, sem que estes lhe permitissem atingir o melhor de sua poética. O encontro com o thriller e o horror transformou completamente a carreira do diretor, alçando-o ao panteão dos grandes mestres do cinema. Dando vazão às suas obsessões com a fragilidade da carne humana e o post-mortem, Fulci adentraria seu período de maior fertilidade criativa, produzindo, durante as décadas de 1970 e 1980, obras-primas como Lagarto em Pele de Mulher (1971), Não se Tortura um Patinho (1972), Zombie (1979), A Cidade dos Mortos Vivos (1980), A Casa do Cemitério (1981) e O Estripador de Nova York (1982).
A maior expressão do amor de Lucio Fulci pelo cinema pode ser percebida justamente em sua elaborada representação da morte, expandindo seus efeitos tanto para os personagens em tela quanto para o espectador. E um acontecimento recorrente nas obras do cineasta, legitimamente reconhecido como o Mestre do Gore, é quando o desejo de um personagem por olhar, por desvendar e ver além do que deveria ser visto, torna-se a razão para este perder a visão ou ter seu olho perfurado, mutilado ou arrancado. A estaca que atravessa o globo ocular de uma mulher ao espiar pelo buraco da fechadura; o olhar que se cega misteriosamente assim que um casal cruza um famigerado portal. Não poderia existir, afinal, ideia mais romântica para sintetizar o trabalho de Fulci como artesão do horror: o cinema como profanação do olhar, como celebração da supremacia poética do imaginário frente aos limites da razão. Se realizar um filme fantástico é arriscar-se a enquadrar o invisível, a obra-prima absoluta de Fulci, Terror nas Trevas (1981), eleva este desafio – e também o seu cinema – ao status de pura poesia.
“And you will face the sea of darkness, and all therein that may be explored”.
Passados 40 anos desde o seu lançamento, Terror nas Trevas permanece como a maior elegia à arte fantástica jamais realizada. E, para que este feito seja possível, o pacto firmado por Lucio Fulci com suas personagens é estritamente o mesmo exigido por ele a seus espectadores: uma entrega total às páginas de uma profecia escrita nas chamas do Inferno, que, ao serem lidas, ressignificam inteiramente o mundo como o conhecemos. Fulci rasga as principais convenções do storytelling logo no prólogo da obra, e tudo que o sucede reflete um desejo por testar os limites daquilo que pode ser visto, sentido, percebido ou filmado, criando sequências que implodem a matéria física em cena – a carne humana, o espaço, a imagem – para dar a ver a matéria abstrata do imaginário. “Sou um médico, não aceitarei explicações irracionais”, resmunga o protagonista, segundos antes de balear zumbis com uma arma sem munição e fazer uma viagem inesperada para o além, de onde jamais retornará.
Terror nas Trevas comete a audácia de reproduzir em sua estrutura narrativa o fluxo onírico dos pesadelos, ou mesmo, para se manter no campo das artes, a estrutura fragmentária de um álbum musical. A força da obra é localizada justamente nos pontos de contato entre mídias aparentemente distintas como o cinema e a música, duas formas de expressão artística nas quais as emoções do espectador são manipuladas pela modulação do tempo, dos tons e das formas – visuais ou sonoras. Tão logo seja pressionado o play, a atmosfera fantástica da obra suprime a vaga noção de realidade que circunda o hotel onde a história é ambientada, enquanto o encadeamento narrativo se mantém menos interessado em avançar seu fiapo de trama do que em construir uma sucessão de peças potentes e maravilhosas, sequências quase independentes umas das outras e que perseguem os efeitos de horror pretendidos para cada situação imaginada – aproximando-se muitas vezes da abstração e quase sempre da experimentação visual.
A câmera de Fulci vaga pelo espaço cênico com liberdade à procura do horror, do fantástico e do grotesco em cena, os quais enquadra com o esforço do zoom e dos planos de detalhe. A matéria no entorno da câmera é manipulada de acordo com a necessidade para se alcançar o efeito pretendido em cada situação, operando por meio de uma lógica própria. A carne humana em cena está sempre a um passo da desintegração total, e duas gotas de um líquido suspeito podem dissolver um cadáver inteiro em poucos segundos. Em Terror nas Trevas, mais que em qualquer outra obra, o corpo humano é tratado – e retratado – como um frágil artefato de carne e sangue. Fulci estoura cabeças, rasga membros, fura órgãos, arranca vísceras, corrói crânios e solta seus bichos de estimação (aranhas, cachorros, zumbis) para fazerem um verdadeiro banquete da carne dos personagens, reforçando o teor onírico do filme, um pesadelo ad aeternum em que o Mal é esta força suprema que reina no universo e dele se alimenta.
Por estas e tantas outras razões, convém dizer que Terror nas Trevas não é apenas um dos grandes filmes de horror já realizados, como é, especialmente e essencialmente, um dos grandes filmes sobre o horror já realizados, sobre o que representa a experiência do horror no imaginário e no próprio cinema. Ideia que definitivamente é celebrada na conclusão da obra, quando a dupla de protagonistas, um casal outrora cético e que atravessa o filme alheio a todos os acontecimentos fantásticos da história, finalmente é tragado para o “outro lado” do título italiano (L’aldilà), ou para as trevas do título brasileiro, uma imensa paisagem desoladora coberta por poeira, sombras e cadáveres, e da qual jamais encontrarão saída. É o destino final da viagem alucinante proposta por Fulci e a imagem síntese de um dos pontos altos do cinema de horror italiano, encerrando um filme ao mesmo tempo crepuscular e seminal deste ciclo, para ser apreciado com o coração aberto e os olhos cobertos de sangue.