A adaptação de Luis Buñuel para o clássico de Daniel Defoe conserva o ponto de vista subjetivo do narrador-protagonista, mantendo o relato oral como fio condutor da narrativa – a exemplo de seu original literário -, mas o faz com absoluta sabedoria, preservando o essencial das palavras – jamais desperdiçadas – e encontrando imagens fortes o bastante para transformarem a história do náufrago europeu em uma ilha perdida num cinema igualmente impressionante e incômodo.
É um filme sem nenhum romantismo. As imagens são cruas, a forma é direta e econômica, e o interesse de Buñuel reside na loucura que emerge da situação e nos esforços do protagonista para lidar com ela. A relação entre homem e natureza é filmada com densidade, expondo os ciclos de vida e morte. Enquanto o personagem se desloca pela selva à procura de mantimentos, também cuida de alguns animais de estimação que definham com o passar do tempo (cachorro, gato, papagaio), procura meios de caçar e matar outras espécies para se alimentar (tartarugas, cabras), desenvolve habilidades antes inimagináveis para um homem europeu inexperiente com trabalhos manuais.
A construção visual intercala planos gerais da ilha com close-ups de animais, árvores, solo e mar, porém fotografadas com extrema saturação de cores, atribuindo ao filme uma áurea de delírio tropical que se adequa muito bem à obra – e ao próprio cinema de Buñuel, na contramão do senso comum que trata este como um filme menor, geralmente desprezando-o por supostamente não dialogar com seus melhores trabalhos. A relação entre homem e natureza retornando às suas origens, como necessidade de subsistência e sobrevivência em meio à solidão, sem uma sociedade constituída no entorno, obrigando Crusoé a conversar com animais e com Deus para tentar se manter lúcido – mas a única resposta que obtém é a do próprio eco de sua voz reverberado pelas montanhas da ilha.
Toda primeira parte da obra é precisa em contextualizar a situação, com algumas ousadias de Buñuel, como a geralmente lembrada sequência de sonho (inexistente no material original) em que Crusoé recebe a visita do seu pai, um defensor da vida da classe média como uma necessária estabilidade para o homem (sem os excessos da burguesia e a miséria da classe trabalhadora), uma assombração que vai nortear os passos seguintes do náufrago na ilha. Crusoé tentará reproduzir naquele espaço os confortos da vida estável, estruturando a agricultura e a pecuária, e com o tempo construindo uma grande cabana que ostenta como um castelo, jarros e utensílios de barro, um barzinho para beber rum, redes de dormir e outros apetrechos, sempre à sombra das profecias do pai.
Mas os privilégios e a fé não salvam o homem da loucura. Se a primeira parte da obra aborda diretamente a solidão do náufrago, na segunda estabelecem-se algumas relações sociais que repensam a estrutura colonialista da exploração européia à África e à América, com o surgimento de tribos canibais e piratas brancos, além do conhecido personagem Sexta-feira, um nativo resgatado da morte por Crusoé que passa a servi-lo. Relação tratada com ambiguidade e ironia por Buñuel, na qual ambos estabelecem uma amizade que flerta com o homoerótico, extrapolando os limites da serventia.
Embora alguns reduzam o filme a uma simples aventura colonialista, a abordagem da relação entre Crusoé e o nativo é emblemática. Sexta-feira aprende inglês não somente para ter acesso à linguagem do europeu, mas também para confrontá-la. No que talvez seja o diálogo mais subversivo do filme, questiona o fato de Deus ter criado o Diabo, insinuando a responsabilidade direta de Deus sobre a maldade no mundo. O que se vê no filme, porém, ilustra a ideia de que as barreiras entre bem e mal são difusas, sendo a violência, por vezes, a única saída para a sobrevivência. Os valores cristãos, na obra de Buñuel, são confrontados com rara audácia, e em As Aventuras de Robinson Crusoé são complexificados até que o filme se torne uma espécie de parábola às avessas, onde ao invés de uma moral esclarecedora a história termine com dúvidas ainda mais acentuadas.