O Segredo Íntimo de Lola (Jacques Demy, 1969)

As obras mais populares de Jacques Demy costumam evidenciar o artificialismo da encenação em suas imagens, tornando-o elemento vital para a mise-en-scène. Entretanto, é em O Segredo Íntimo de Lola (Model Shop) que o cineasta francês, durante viagem a Los Angeles no final da década de 1960, filma sua declaração de amor mais direta ao próprio cinema e à arte de, por meio dos filmes, aprender a olhar o mundo com uma outra sensibilidade.

Demy transporta à América não apenas um modo de narrar aperfeiçoado durante os primeiros anos de atividade na França, quando lançou seus maiores sucessos (Duas Garotas Românticas, Os Guarda-Chuvas do Amor, Lola, Baía dos Anjos). Mais do que isso, chega pela primeira vez à capital da indústria cinematográfica acompanhado de recortes de memórias, histórias, situações, planos e até mesmo personagens centrais de sua obra pregressa, articulando autorreferências em uma trama que situa o ato de olhar no centro da narrativa, convidando o espectador a compartilhá-lo com seu protagonista.

De Lola, seu longa-metragem de estreia, Demy importa a própria personagem título, interpretada por Anouk Aimée, aqui uma estrangeira francesa carregando sonhos destruídos em sua passagem pela cidade dos sonhos. É a primeira aparição da atriz no filme, falando poucas palavras com um adorável sotaque francês, que imediatamente acende a paixão por uma imagem idealizada – disparando no personagem de Gary Lockwood, o protagonista, a lembrança de um amor vivido na França; e em nós, espectadores, a certeza de um cinema consciente do valor de suas imagens.

É o suficiente para instalar uma obsessão que conduz nosso olhar por todo o restante da obra. Lockwood persegue Lola pelas ruas de Los Angeles, segue no encalço de seu automóvel conversível pela Sunset Boulevard, sobe as colinas da área nobre de Hollywood – ele, por sua vez, um desempregado que vive no subúrbio, ao lado de poços extratores -, revela para o espectador toda a imensidão da cidade. Lola, a imagem que quer ser amada, olha pelo retrovisor e observa Lockwood a perseguindo, denunciando a autoconsciência da encenação: a imagem seduz para espiar, através do espelho retrovisor, o rosto encantado do espectador.

Esse conjunto de artifícios, entretanto, não está à serviço de uma metalinguagem exibicionista, mas sim de uma atitude de sensibilização do olhar. É um filme que faz uso dessa consciência sobre os mecanismos do cinema justamente para dar vazão a situações completamente triviais, as quais somos convidados a acompanhar em absoluta cadência: caminhar pelas ruas numa manhã ensolarada, dirigir vendo as luzes do tráfego noturno, olhar a cidade de um mirante, tomar uma xícara de café no restaurante, colocar uma moeda na jukebox, fumar um cigarro, tocar as notas de um piano, atender o telefone, beber um copo de whisky, fotografar uma mulher, acariciar um corpo nu, beijar, amar, chorar, aceitar a frustração; são despedidas premeditadas, surpresas desagradáveis, notícias chegando pelo rádio ou pelo telefone; é a solidão de um quarto vazio, a cama com lençóis desarrumados, a janela emoldurando as roupas úmidas penduradas no varal, enquanto o vento leva embora o que restou.

As imagens se desdobram sem que muito seja necessário para seguirmos completamente encantados por cada plano, ação ou situação. Que podem ter sido vistas antes, sim, na própria obra de Demy inclusive, mas que aqui são conjugadas com um rigor e uma delicadeza simplesmente à beira da perfeição. A grande homenagem de Demy ao cinema e à cidade mãe da indústria cinematográfica é justamente seu filme que mais nos convoca a olhar para a cidade, para as pessoas e a banalidade cotidiana, pois amar o cinema é, antes de tudo, amar a vida e seus inesperados desvios, ser surpreendido por eles até que não exista mais nada a ser visto.

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