Prelúdio Para Matar (Dario Argento, 1975)

Escavando a imagem 

Os giallos de Dario Argento, sobretudo os quatro filmes do gênero realizados durante a primeira década da carreira do diretor, são construídos em torno de investigações sobre o olhar e a memória. Desde o seu primeiro longa metragem, O Pássaro das Plumas de Cristal, seus protagonistas são testemunhas oculares de um crime ou precisam desvendá-lo mergulhando em investigações de imagens pregressas, estejam essas imagens registradas em matéria fotográfica ou na matéria abstrata do imaginário. Durante o processo, transformam-se em presas do assassino, abandonando a condição de testemunhas para assumirem um papel ativo dentro da história. Esta obsessão temática conecta o autor, mais do que qualquer outro nome do giallo italiano, aos filmes que inauguram a fase moderna do thriller e do horror, distintos justamente por fabularem sobre a própria fabricação de imagens, inerente ao cinema, e sobre a condição vouyerística do espectador, como as obras-primas realizadas por Alfred Hitchcock (em especial Janela Indiscreta, Um Corpo Que Cai e Psicose); o filme maldito de Michael Powell (A Tortura do Medo); e o mergulho de Michelangelo Antonioni na dicotomia entre o real e o simulacro (Blow Up – Depois Daquele Beijo). Em Prelúdio Para Matar, este tema ganha a sua representação definitiva na obra de Argento.

Quarto giallo dirigido pelo mestre do horror e do suspense italiano, Prelúdio Para Matar foi lançado em 1975, alguns anos após ter concluído a sua Trilogia dos Bichos (1970-71), obra responsável por consolidar os principais códigos do giallo da década de 1970 – que, embora inspirados no homônimo gênero literário, muito popular na Itália nos anos 1930, nos krimis alemães e nos proto-giallos dos anos 1960, receberam a partir de Argento a sua releitura moderna. E é necessário pontuar a distância temporal entre a primeira trilogia e este comeback realizado alguns anos mais tarde, justamente porque, em Prelúdio Para Matar, Argento empreende uma espécie de retorno à cena do crime, realizando o seu próprio mergulho em imagens e memórias pregressas para, assim como seus protagonistas, desvendar alguns mistérios que o obcecam. Como Thorwald esquartejou a esposa detrás das cortinas do apartamento? O que Norman Bates vê quando espia o quarto de Marion pelo buraco na parede? O crime realmente aconteceu no parque londrino fotografado por Thomas? O que tanto nos obceca nas imagens que vemos e, principalmente, nas imagens que nos escapam?  

Prelúdio Para Matar é o filme que melhor codifica e materializa as inquietações de Argento sobre os mistérios do olhar. Desde a primeira cena pós-créditos, com a câmera subjetiva adentrando o teatro vermelho onde a médium anunciará pela primeira vez a presença da morte, em que somos introduzidos ao filme pelo ponto de vista de quem “já matou uma vez, e matará novamente“, é como se a própria história do cinema de horror fosse evocada do além para uma sessão assombrada. Prelúdio Para Matar é inteiramente ambientado em uma realidade onírica, que somente pode existir em um simulacro cinematográfico. Pode-se afirmar o mesmo sobre outros filmes, é verdade, mas não são muitos outros filmes que nos surpreendem com torções no tempo e no espaço tão radicais quanto a primeira sequência de crime deste filme, o assassinato testemunhado por Marcus, protagonista da história, quando a médium que há pouco antevia o banho de sangue é morta duas vezes em um intervalo de alguns minutos, simplesmente porque, no cinema, como Hitchcock nos ensinou, pode-se matar a mesma pessoa duas vezes.

A fantasmagoria de Prelúdio Para Matar passa pela escalação de David Hemmings, ator protagonista de Blow Up, para interpretar este músico de jazz que, enquanto conversa com um amigo na rua, testemunha o assassinato na janela de outro apartamento localizado no mesmo prédio em que vive, e que, após visitar a cena do crime, percorre o restante da história obcecado por encontrar uma imagem que a sua memória não registrou devidamente. A presença de Hemmings impõe imediatamente ao filme essa condição fantasmática, afinal, o personagem é movido pelas mesmas questões do filme de Antonioni, como um duplo reencarnado. Mas não é o fantasma de Blow Up que assombra Prelúdio para Matar, e sim Argento que, conscientemente, invoca esse fantasma para compôr seu filme. O rosto do ator é um dentre tantos signos recuperados pelo diretor para envolver-nos nesta teia maneirista, não somente reproduzindo as questões de Antonioni, mas manipulando-as. E se, ao invés de ampliar a fotografia, Hemmings pudesse penetrar na imagem, invadir com o próprio corpo e os próprios olhos a cena fotografada? 

Argento concede a Hemmings o desejo outrora negado: atravessar o simulacro e arranhar a sua parede, escavar a imagem com as próprias mãos para enxergar além – como nas longas sequências de exploração à casa assombrada, ponto alto do filme. Mais do que isso, ter a sua própria carne chamuscada, suar, sofrer e sangrar do outro lado dessa imagem. O que vemos em Prelúdio Para Matar é menos um novo giallo de Argento ambientado na Itália, e sim uma obra ambientada dentro da própria realidade fílmica, no coração da Trilogia Dos Bichos, de Blow Up ou Psicose, ou seja, um filme mergulhado em outros filmes, instaurado numa história das imagens que Argento escava obsessivamente para construir novas sequências que amplifiquem a experiência do giallo, elevando-a a outro patamar: o das grandes obras-primas sobre o cinema. Não um pastiche ou uma colcha de retalhos referencial, mas um filme em que os mecanismos do cinema, especialmente os do thriller e do horror, gêneros aos quais Prelúdio Para Matar se filia, são transformados em matéria cinematográfica para dar forma a uma investigação sobre a essência da pulsão escópica, a mesma pulsão que mobiliza os personagens de seus filmes e dos demais filmes citados e, é claro, que mobiliza também o próprio espectador de cinema. 

A sequência de mortes de Prelúdio Para Matar, que envolvem uma série de personagens remotamente ligados à médium assassinada, existe com o propósito de dar continuidade à sensação mortífera intuída por ela. O crime mencionado durante a mesma sessão mediúnica, e ilustrado na cena pré-créditos, aconteceu há décadas, e novos crimes voltam a acontecer simplesmente porque alguém tocou no assunto. Do outro lado, o fio condutor de toda a história, que move o protagonista em sua investigação, é uma necessidade pessoal de investigar esses acontecimentos para alimentar seu desejo de desvendar a imagem. Marcus percorre a cidade à procura de pistas, encontra discos com cantigas infantis, livros, desenhos, fotografias, registros diversos que conduzem-no a novas pistas para alimentar a sua busca, e se o assassino continua matando é simplesmente para mantê-lo distante da resposta. Nesta trajetória, Argento entrega aquilo que o seu público almeja: mortes elaboradas, estilização visual, trilha-sonora climática e uma das composições de atmosfera mais envolventes que se pode encontrar, seduzindo-nos a compartilhar da mesma obsessão de seu protagonista.

Entretanto, em Prelúdio Para Matar, não há limites ou espaços seguros, seja para os personagens ou para o próprio espectador. Argento insere a todos dentro desse jogo sem explicar devidamente os papeis, tornando-nos cúmplices e vítimas de um dos mais cruéis exercícios de representação jamais projetados em uma tela. Com os deslocamentos de ponto de vista, sentimos na pele o medo das vítimas de perder a própria vida e o êxtase de quem mata ao ter a vida de outro alguém nas mãos. Isso passa pelas escolhas realizadas para a construção da história, e sobretudo pela forma como essa história é materializada nas imagens, como a câmera manipula a matéria filmada para nos permitir experimentar todas as sensações proporcionadas pelo horror. O que conduz o filme à cena final mais emblemática do giallo italiano, quando, com a devida consciência, Marcus retorna à cena do crime que testemunhou para finalmente desvendar o mistério, porém descobre que a imagem que acreditava ter visto era, na verdade, um espelho presente na cena.

Marcus posiciona-se exatamente no local antes ocupado pelo assassino na noite do crime. A câmera enquadra seu rosto na mesma fração do espelho que antes refletia o rosto de seu algoz, emoldurado pelo quadro gótico pendurado na parede oposta. A cena é filmada de modo que o próprio espectador se identifique com a posição de Marcus no quadro. Não se trata mais de apenas um voyeur, ele também pertence à imagem que observa. Argento convida o espectador a ocupar, junto do personagem, o lugar antes reservado para a pessoa que mata, para que, na cena seguinte, também conceda ao próprio Marcus, que nos representa em cena, a oportunidade de matar pela primeira vez. E com qual finalidade, afinal, mata-se no cinema, se não para o deleite do espectador? A imagem que encerra o filme, com Marcus encarando o seu próprio reflexo no sangue profundamente vermelho que se acumulou ao lado do cadáver, responde a questão. Prelúdio Para Matar não é apenas outro giallo, mas aquele que justifica a existência do gênero, do qual todo nós, incluindo eu e você, saímos sempre com as mãos sujas de sangue.

Texto publicado originalmente no livro Giallo – Filmes Essenciais, lançado pela distribuidora Versátil.

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