“Os artistas devem desmoronar quando os tempos mudam?”
O autor da provocação é Jonas Mekas, que, no auge de 1967, escrevia sobre vibrações estranhas sentidas no ar de uma América em ruínas, ameaçada por conspirações políticas, violações de direitos e embates ideológicos. O mesmo ano de 1967, lembra Mekas, marcava o início da Era de Aquarius, a qual astrólogos afirmavam se tratar de um período de 23 anos muito propício para a criatividade e a imaginação, enquanto se expandiriam no mundo alguns incontornáveis precipícios políticos e sociais. No artigo em questão [1], Mekas refletia sobre a crise vivida naquele ano por dois cineastas singulares, Kenneth Anger e Stan Brakhage, cada qual em sua realidade – Anger, californiano, anunciando em páginas de revistas a morte do seu “eu artista”; Brakhage, do alto de uma montanha no Colorado, atravessando uma turbulência dramática sem precedentes. “O ar treme enquanto esses dois artistas tentam cruzar seus destinos entre duas humanidades[…], eles mesmos como pontes entre as duas, com suas próprias vidas, tentam manter a humanidade unida, dar a ela alguma continuidade e não deixá-la quebrar em pedaços”. Em 2020, nas telas virtuais do Festival de Gramado, dois realizadores gaúchos, coincidentemente – ou não – nascidos ao final da Era de Aquarius, surpreendem pelas pontes temáticas e formais constituídas entre seus filmes. Quarentenados em seus apartamentos, em Porto Alegre e Sapucaia do Sul, Bruno Carboni e Daniel de Bem exploram arquivos de HDs antigos para dividirem com o público alguns fragmentos de memórias familiares, registros íntimos que guardam entre si uma outra similaridade notável: tratam-se, afinal, de memórias sobre dois pais que esses filhos só poderão reencontrar por meio de imagens gravadas. Filmes confessionais mas também expansivos, partindo do reencontro com o outro por meio da virtualidade para acessar questões que tocam em pedras angulares da existência humana – infância, família, memória, luto – e em particularidades desses novos tempos, com seus transbordos de lives, streamings, calls e outros termos importados do além.São artistas que se permitem ‘desmoronar’ em cena, por de fato sentirem os efeitos da estranheza desse momento pandêmico – a pandemia dispara as memórias sobre o pai, revela logo no início a narração de Carboni -, mas sobretudo por parecerem compartilhar uma mesma impressão de que o mundo, esse gigante tantas vezes registrado em imagens ao longo dos últimos séculos, ainda permanece vivo do outro lado das portas, à espera dos nossos olhos, corpos e câmeras, restando à arte “construir algumas pontes para não deixar a humanidade quebrar em pedaços” antes de reencontrá-lo. A perspectiva pela qual acessam essas memórias não permite simplesmente lamentar a ausência das presenças. Ao contrário, os filmes convidam a refletir sobre a presença das ausências, a aceitação da perda daquilo que nos foi tomado – seja um pai, uma memória, um abraço no hall de um festival de cinema -, e a pensar no quanto as imagens, registradas em películas, fitas magnéticas ou cartões SD, reconfiguram e ressignificam nossa relação com as ausências sentidas.
Em Ver a Vista, Daniel de Bem retorna às fitas de infância para abordar a construção da memória, refletindo sobre como a câmera e as imagens produzidas com ela podem instalar armadilhas em nossa própria percepção do passado, substituindo registros singulares de experiências pessoais por outros produzidos através do olhar da câmera – um olhar que nos tempos de hoje, para o bem ou para o mal, se configura como principal mediador da relação entre os indivíduos e o mundo. Em O Luto Impossível, Bruno Carboni acessa um HD com imagens produzidas por seu pai para falar sobre o luto e os fantasmas presentes na imagem, rememorando outra peculiaridade própria das imagens em movimento, a de nos ludibriar com uma presença muito vívida dos mortos, a quem mesmo com a ausência em vida ainda podemos rever nas imagens capturadas anteriormente, num fluxo de gestos, olhares e sorrisos aparentemente – e enganosamente – natural.
As similaridades entre os dois curtas vão além da temática escolhida por seus autores, pois habitam não apenas o conteúdo, mas também a forma. Ver a Vista e O Luto Impossível foram produzidos na intimidade de um lar para serem vistos na intimidade de outros lares, em um festival de cinema virtual realizado num momento singular para o mundo. Partem de memórias individuais para acessar sentimentos, dúvidas e experiências coletivas. Compartilham uma mesma e breve metragem, pouco mais de 3 minutos de duração, e uma estrutura narrativa repleta de duplicidades, constituída a partir da combinação entre imagens de arquivo revisitadas e a própria voz dos realizadores, que introduzem suas ideias sobre o assunto na narração – um deles direcionando a fala à sua mãe, outro ao próprio público.
As potências desse encontro são um gatilho para relembrar a importância da preservação das memórias registradas em imagens. Relembrar que, talvez, é preciso aprender a conviver com fantasmas e algumas revelações que eles nos trazem. Aprender a ser surpreendidos por outros olhares e por outras imagens, que podem confrontar nosso próprio olhar, nossa memória ou as questões que enfrentamos no eterno presente. O que nos leva mais uma vez a Mekas: “Hoje é preciso muita coragem para acreditar no futuro[…]. Tudo parece tão ermo, se julgarmos pela política e pela moral. Mas um pequeno número dentre nós sente que nada irá parar a Era de Aquarius, a era espiritual”.
Por falar nisso, enquanto o Festival de Gramado acontece em nossos televisores, computadores e smartphones, é preciso relembrar também que a memória do cinema brasileiro corre o risco de arder em chamas com o desmanche instaurado pelo governo federal na Cinemateca Brasileira – e de chamas o Brasil de 2020 entende muito bem. Mais de um século de registros que podem ser extinguidos por consequência de um projeto político nefasto, que se beneficia há séculos do apagamento da memória para a manutenção de poderes. Que diante desse momento de incertezas, transformações e aprendizados estes dois artistas em isolamento, distantes um do outro, desmoronem juntos para criar filmes tão próximos, que se encontram e ganham o mundo em um mesmo festival virtual, é por si só um acontecimento digno de nota dessa Gramado suspensa entre as nuvens.
[1] MEKAS, Jonas. “Os artistas devem desmoronar quando os tempos mudam?”. Publicado no catálogo da Mostra Jonas Mekas, realizada em 2013 pelo CCBB.
Filmes exibidos na Mostra de Curtas Gaúchos do Festival de Gramado 2020