O Mal Não Existe (Ryusuke Hamaguchi, 2024)

Dois planos análogos delimitam o início e o fim de O mal não existe: por meio de um travelling em contra plongée, observamos as copas das árvores de uma floresta durante longos segundos, percorrendo o caminho mata adentro. Se as imagens produzidas nos dois planos são quase idênticas, sugerindo uma poética simetria, não podemos dizer o mesmo sobre o efeito causado. Algo aconteceu e transformou a maneira como percebemos o mundo.

Hamaguchi prepara nosso olhar para a beleza e a crueldade da natureza, seja a natureza terrestre ou a própria natureza humana. Neste trajeto, percorrendo caminhos nada óbvios, produz algumas das passagens mais impressionantes do cinema em 2024, com plena sintonia entre a encenação e a banda sonora assinada pela compositora experimental japonesa Eiko Ishibashi – ao lado de seu companheiro, o produtor e multiinstrumentista Jim O’Rourke.

Saído de uma temporada premiada e exaltada mundialmente com o drama colossal de Drive My Car, Hamaguchi surpreende ao despir seu filme de grandes artifícios dramáticos, convidando o espectador a entrar no ritmo de uma contemplação serena e misteriosa. A câmera passeia lentamente junto das personagens por uma região rural do Japão, que existe alheia aos impulsos predatórios do capitalismo – mas não para sempre.

É justamente a chegada do Progresso, ainda como projeto, que introduz um ruído nesse ecossistema, transformando a relação de seu personagem central, um faz-tudo da pequena comunidade, com o entorno. Quando a natureza se desestabiliza, as mesmas mãos que antes cortavam a lenha e colhiam a água do rio para beber podem ser capazes de fazer jorrar sangue sobre a neve.

O mal não existe explora menos a oposição entre o Bem e o Mal – se o Mal não existe, existirá o Bem? -, mas sim outra dicotomia, intimamente ligada aos valores orientais, entre equilíbrio e desequilíbrio – como destaca o próprio protagonista em uma das discussões da comunidade com os empreendedores cosmopolitas, as cenas mais diretas do filme, e que introduzem elementos discursivos que ajudam a ler as cenas mais abstratas e sugestivas.

Se é o desequilíbrio provocado pelo capital que transforma a realidade das personagens, entretanto, Hamaguchi não poderia ser mais feliz ao abordar um tema tão relevante: alheio aos vícios do cinema contemporâneo de pautas sérias, preocupado em provocar os sentidos com pura potência estética.

Comentário publicado originalmente na edição #034 do Zinematógrafo, fanzine de crítica de cinema de Porto Alegre.

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