A Reencarnação do Sexo (Luiz Castellini, 1982)

O cinema da Boca do Lixo se aproximava dos seus anos derradeiros quando Luiz Castellini, roteirista e diretor com carreira consolidada no popular reduto cinematográfico do centro de São Paulo, levava para o produtor Cláudio Cunha a ideia de um filme de horror livremente inspirado em um dos contos do Decameron, de Boccaccio, obra seminal da prosa europeia e da literatura erótica. O argumento foi imediatamente comprado pelo produtor e deu origem a uma das mais delirantes fitas de horror produzidas na Boca, em uma combinação de talentos e ideias malucas que a destaca dentro do repertório de produções do gênero capitaneadas pelos aventureiros da Rua do Triumpho.

Castellini vinha de uma série de filmes eróticos estrelados pela musa Patrícia Scalvi, como As Amantes Latinas, Tara – Prazeres Proibidos e Orgia das Taras, incluindo um dos segmentos de Pornô, narrativa episódica orquestrada por David Cardoso. Com Scalvi novamente escalada como atração principal, o diretor instala A Reencarnação do Sexo na fronteira entre o sexo e a morte, equação que projetou mundialmente os cinemas exploitations durante as décadas de 1960 e 1970, e que sustentou a Boca durante muitos anos como um dos principais fenômenos populares da história do cinema brasileiro. Porém, o faz com um toque subversivo à altura de mestres iconoclastas como Garret e Reichenbach. 

Se os filmes da Boca eram associados pelo senso comum à promessa de entregar um conteúdo erótico dentro dos padrões permitidos em sua época – em 1982, a nudez frontal já estava liberada nos cinemas e o país caminhava para a liberação do sexo explícito -, A Reencarnação do Sexo encara esse pré-conceito como condição sine qua non para o horror, embaralhando a ordem dos fatores em cena. Estruturalmente, o filme parece respeitar à risca a fórmula básica dos filmes da Boca, com o cinema de gênero utilizado como pretexto para encadear sequências de muito erotismo e sexo simulado, porém é neste ponto que a subversão torna-se essencial para o conceito da obra: o filme realmente encadeia essas sequências, diversas delas, mas não é o gênero que serve como pretexto para o erotismo, e sim o contrário. 

Em uma sucessão de coitos interrompidos, Castellini cria um filme de horror totalmente seduzido pelo prazer de trabalhar a iconografia do gênero em sua invasão às cenas eróticas, explorando a ambientação da casa assombrada, os jogos de luzes e sombras e a violência gráfica com o mesmo tesão com que explora a nudez e o movimento dos corpos nas cenas de sexo – extremamente bem filmadas, diga-se de passagem, mas encerradas de modo sangrento e grotesco, com a petit mort dando lugar ao gozo gore. Tem um pouco de Boccaccio e muito de Terence Fisher, Jean Rollin, Jesus Franco, José Mojica Marins, Roger Corman, Kaneto Shindô e Nobuhiko Obayashi, numa mistura que o próprio Claudio Cunha, em uma de suas célebres entrevistas, nomeia sarcasticamente como pornoterror.

Se a combinação funciona, é consequência do modo inventivo como a ação é organizada em torno dos elementos subversivos que dão corpo à trama. A Reencarnação do Sexo se passa em uma residência sertaneja, onde um trabalhador rural é esquartejado pelo patrão após descobrir o romance entre seu empregado e a sua filha, um casal cheio de tesão que quer ficar junto para sempre, apesar de suas diferenças sociais e econômicas. O jovem é sepultado na mata mas sua cabeça é desenterrada pela amada, que a transfere para um vaso de plantas para mantê-la próxima do seu corpo, no interior da residência – ideia emprestada da obra de Boccaccio. Subitamente, a jovem também morre e todos os habitantes da casa acabam deixando a residência, que permanece habitada pelo fantasma da moça e pela cabeça enterrada no vaso.

A trama acompanha as sucessivas tentativas de ocupação da residência, outrora ninho de amor dos jovens amantes que, na impossibilidade de continuar trepando, transferem sua gana de sexo para os demais habitantes da casa. Os novos habitantes seguem seu destino inevitável: transar incansavelmente até se matar. Sob influência da cabeça – falante – no vaso e espreitados pelo fantasma da moça e seu machado, acompanhamos casais héteros, lésbicas e jovens em orgia, numa sucessão de peças articuladas em torno do conceito principal: o único fim possível para dar conta de tanto tesão reprimido é a morte. Ao público, resta o desprazer de ver, por exemplo, uma cena supostamente erótica de sexo entre duas mulheres terminar em um deepthrouth lésbico com um consolo perfurando a garganta, em uma imagem que é das mais inacreditáveis do cinema fantástico do período – seja ele brasileiro ou não. 

Entre o erotismo e a morte, a fiscalidade do corpo e a abstração do sobrenatural, A Reencarnação do Sexo termina como uma grande coleção de imagens doentes e apaixonadas pela sua própria liberdade, além de um representante fiel do sistema de produção da Boca, onde o controle da produção ficava a cargo das próprias equipes e existiam poucos limites a serem ultrapassados – pois, enfim, não existiam limites. É um dos contos sobrenaturais mais surpreendentes produzidos no Brasil, com um olhar quase oriental para o modo como representa o post-mortem em contato com a fisicalidade da matéria e do espaço, e ainda pelo modo como articula sexo e violência em torno dos seus fins. Certamente uma obra irrepetível, e que ainda pode surpreender aos fãs do cinema exploitation e, em especial, da imensa produção de gênero da Boca do Lixo.

Texto publicado originalmente no livro Cinema Fantástico Brasileiro – 100 filmes essenciais, lançado pela Abraccine. 

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