Ao confrontar duas figuras míticas da cultura moderna norte-americana, o assassino em série e a artista pop, Shyamalan retoma algumas questões de outro belo filme, Vidro, refletindo sobre mecanismos que constituem e reverberam essa cultura.
A primeira parte de Armadilha abraça as convenções do thriller de locação única para estabelecer a dinâmica entre as duas personagens. Da cantora pop, nesta parte, conhecemos pouco além da voz e da imagem filtradas pelas performances musicais executadas no palco, sua personalidade artística forjada para o mundo do entretenimento. O corpo da cantora é enquadrado à distância, do ponto de vista da plateia, ofuscado pela projeção virtual de sua própria imagem, em maior escala, nos telões da arena.
Do lado oposto, em meio ao público, a câmera acompanha com notável proximidade a movimentação do assassino encurralado, sujeito que, como rapidamente saberemos, mantém uma dupla identidade para acobertar seus instintos violentos – projetando em cena, para isso, uma terceira personalidade: a do paizão “cidadão de bem”, herói doméstico que leva sua filha adolescente para o show da artista preferida.
A cada desafio enfrentado para se desvencilhar da emboscada, é necessário que esse homem-duplo encontre novas soluções para preservar seu disfarce, e as saídas encontradas transitam no limite da ambiguidade e do puro cinismo. Seja ajudar um trabalhador a carregar caixas no depósito, dar um presente especial para a filha que se recupera de uma doença grave, salvar uma garotinha que desmaia e desaba no chão; seja derrubar premeditadamente outra garotinha escadaria abaixo ou provocar um acidente com óleo fervente que queimará o rosto de uma trabalhadora.
Independente do teor da ação, o tom escolhido por Shyamalan é o da ironia, nos permitindo ter consciência das reais intenções do personagem para acompanhá-lo a uma distância perigosa. A ironia é intensificada na segunda parte da obra, quando a ação abandona a arena e o filme, consequentemente, também renega seu dispositivo central. Qual é, afinal, a moral dessa fábula às avessas?, podemos nos perguntar a cada reviravolta maluca.
A resposta sugere Armadilha como o trabalho de Shyamalan mais próximo da obra de outro mestre, Brian De Palma. Não apenas como hábil construtor de imagens e narrativas, mas como dois autores que se debruçam filosoficamente sobre os mecanismos do cinema para pensar a presença dele no mundo. O sorriso do assassino no último plano denuncia: no centro da armadilha de Shyamalan está o próprio espectador, e tão delicioso quanto se aventurar pelo filme é observar as diferentes respostas dadas a ele.
Comentário publicado originalmente na edição #034 do Zinematógrafo, fanzine de crítica de cinema de Porto Alegre.
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